Caminhoneiros: nadando contra a "unanimidade"




Relativo à pesquisa do Datafolha  que revela que 87% das pessoas apoiam a greve/protesto dos caminhoneiros, concluo que muitas pessoas estão indo atrás da manada enquanto outras,  com maior nível educacional, não estão usando qualquer tipo de lógica econômica, indutiva e estatística que as permitam reconhecer os prejuízos e mortes em decorrência desses acontecimentos:


1) A galera está superestimando a herança do movimento dos caminhoneiros em longo prazo, tentando atribuir um caráter "libertador", que só existe na ficção. Não acredito que esse fato irá marcar o início de uma nova era de impostos baixos, redução de despesas, um novo foco social e diminuição da corrupção disseminada.


O governo Temer diante do apagar das luzes está totalmente moribundo, só esperando o fim, quando vários dos seus próceres tentarão se esgueirar das ações da Justiça. Temer não precisa resgatar a popularidade, uma vez que ele nunca a teve!


A redução de despesas se faria necessária porque um hipotético corte geral nos impostos exigiria no mínimo uma redução de mesmo nível nas despesas públicas obrigatórias, que consomem quase todo o orçamento atual.


É um pensamento mágico achar que o governo pressionado irá acabar com os privilégios e cargos comissionados, cortando gastos com os 3 poderes, demitindo também levas e levas de funcionários públicos. Sem falar na questão da previdência.


Redução de impostos significativa sem cortes de despesas implica necessariamente que nosso ciclo de endividamento nos levará para o mundo do calote, onde a hiperinflação nos fará companhia, com empobrecimento intenso da população mais pobre.


2) Pelo contrário, esse movimento, visto como início de um período áureo, irá contribuir para diminuir o PIB ou sua expectativa de reversão. Produções inteiras foram dizimadas, com mortes generalizadas de suínos, aves, perdas de alimentos perecíveis, etc. Isso irá aumentar o preço de vários produtos, o que pressionará a inflação e a taxa de juros, além da diminuição da expectativa dos agentes econômicos, o que pressiona por uma redução ainda maior do nível de investimentos, com consequente aumento do desemprego.  Fora a falência de pequenos negócios que já estavam na corda bamba e não conseguem mais absorver prejuízos extemporâneos. Isso tudo não sairá do bolso do Temer e seus asseclas, mas de pessoas comuns como nós e, com certeza, atingindo de forma mais lancinante os menos providos.


3) Quase todos nós somos um pouco culpados pela  atuação política e mobilização insuficientes. No entanto, esse é o mesmo nível de culpa de bilhões de cidadãos de todo o mundo, pobres ou não, famintos ou não, que se "deixam" ser vitimados por governos corruptos em toda banda pobre do mundo, quer seja na América Latina, África ou Ásia.


4) Assim, acho greves, protestos e movimentos instrumentos válidos dentro desse arsenal. São meios que um povo dispõe para pressionar governos ineptos e corruptos. Infelizmente, o mundo não funciona por pensamento desejoso. Houve situações em que efetivamente rebeliões derrubaram governos tirânicos (Rússia em 1917, Cuba em 1959 e Egito em 2011). Lamentavelmente isso fez subir ao poder outros governos, que no final terminaram por se tornar despóticos, por outra via. A mobilização popular é importante, mas não é uma panaceia.


5) O governo foi totalmente incompetente ao não se sentar à mesa para negociar, diante de sucessivos avisos das cooperativas e associações de caminhoneiros. Era ridículo que o preço dos combustíveis tivesse reajustes tão frequentes, tirando qualquer previsibilidade das partes envolvidas.


6) Muitos pleitos dos caminhoneiros são justos, já que é mesmo tolo taxar o transporte de carga no Brasil do jeito que estava sendo feito, uma vez que isso passa a ser uma importante parte do custo para muitas mercadorias. O pedágio é tão caro no Brasil, que um transporte de carga com baixo valor em reais por m3 de carga termina por onerar o preço final de forma significativa.


7) Um ponto básico para mim é que a liberdade de um termina quando a liberdade do próximo entra em jogo. Assim não apoio nada que viole o direito de ir e vir das pessoas e mesmo dos colegas que não desejem aderir, que são os piquetes.


8) É certo que a maioria dos manifestantes não bloquearam as estradas, mas houve muitas exceções a esse espírito cidadão. Tanto que houve dezenas de registros de bloqueio total de estradas, amplamente documentados por fotos, filmagens, etc. Mesmo que aqueles que bloquearam estradas gentilmente liberassem os casos mais urgentes, isso nenhum efeito tem sobre ambulâncias e similares presos na retenção um pouco mais atrás. Fora que eles fizeram piquetes em muitos lugares, impedindo qualquer caminhoneiro autônomo de fazer seu trabalho, mesmo transportando carga viva e/ou altamente perecível  e mesmo não tendo um plano B para sua subsistência.  


9) Tanto que o bloqueio foi absolutamente efetivo que houve por alguns dias um colapso generalizado de abastecimento no Rio de Janeiro, especialmente de hortaliças, algumas tipos de frutas e combustível, que são produtos com menor nível de estoque nos depósitos e estabelecimentos comerciais.


10) Aqui no Rio chegou a faltar combustível em 100% dos postos. Só havia GNV aqui e ali. Portanto a maioria de ambulâncias privadas e públicas sequer conseguiu rodar nos piores dias. E sabemos que em caso de infarto agudo ou AVC, qualquer minuto conta. O Uber e os táxis só funcionaram porque quase toda frota é a gás GNV. O BRT chegou a parar 100%. É óbvio que ambulâncias que não rodam aumentam bastante o tempo de socorro em emergências médicas, não tem como negar isso.


11) O que acontece em uma cidade grande é uma multiplicação do chamado efeito borboleta, onde alterações, por vezes não muito grandes, modificam visceralmente a cadeia de miríades de acontecimentos do dia a dia, desde pequenos contratempos (como eu) até mortes diversas em meio  a uma  população de 200 milhões, incluindo milhões de pessoas com saúde precarizada, bastante idosas e vulneráveis.


12) É óbvio que em um ambiente de aumento adicional da precarização, o número basal de mortes em hospitais por causas evitáveis aumenta. Só um espírito fanático pode negar essa verdade. Falem com seus amigos médicos respectivamente nas suas cidades. É impossível negar essa lógica. E não se pode culpar apenas o governo pelo aumento de mortes, já que houve um novo fator no vetor multifatorial de causas de óbitos em hospitais e nas emergências médicas.


Quem trabalha em hospitais públicos, sabe que diariamente em muitos das unidades os médicos são obrigados a fazer papel de Deus, escolhendo quem vive e quem morre,  diante da limitação extrema de recursos, insumos, equipamentos funcionando e pessoal.  E que isso obviamente se agudizou nos piores dias da greve.


13) É evidente que esse tipo de morte não é notícia de jornal, como não são o ritmo de mortes anteriores, que responde, segundo estudos, por cerca de 20% dos óbitos anuais no Brasil. Isso cai na vala comum do anonimato. Assim como mortes em trânsito, a maioria não leva a sequer uma nota na mídia. Está para nascer o dia em que uma mídia publicar. "Joaquim Santos morreu de AVC porque só conseguiu chegar no hospital 2 horas depois", "Roberta Silva teve falência renal por falta de hemodiálise"


14) Para mim é claro que basta um hipotético aumento de 10% no número de óbitos diários basais de 829,  para que se tenha 80 novas mortes evitáveis por dia, o que já ultrapassa em muito o número total de mortos pelos terroristas no Brasil em todos os anos 70 da Ditadura Militar. Para ser justo, é preciso ressaltar que, mesmo supondo que a estimativa linkada esteja correta em ordem de grandeza, parte dessas mortes iria acontecer em pouco tempo de forma não evitável.


15) Quem defende um movimento como esse e aceita a plausibilidade do raciocínio acima sobre as mortes indiretamente causadas por ele,  deveria por coerência   apoiar o terrorismo com arma de uma luta dita como justa, encarando mortes eventuais como danos colaterais na busca de um bem maior. Afinal, está apenas se trocando homicídio doloso por homicídio culposo.

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