Lenda: o Congresso é coalhado de pessoas sem voto


Vários grandes órgãos de imprensa, como El Pais, Estadão, Band e Exame,  estão incansavelmente repetindo a mesma bobagem:  o atual sistema eleitoral levaria gente para Brasília com muito pouco voto.

A reportagem do El Pais, por exemplo, declara que apenas 36 dentre os 513 deputados, estão lá por mérito próprio.

Nada mais falso. Mesmo a grande imprensa, por vezes, abdica da pesquisa que seria necessária, antes de publicar bobagens como essa.

Para provar isso para todos interessados, vamos começar pelo começo:

Quociente eleitoral = arredonda ( votos válidos / número de cargos em disputa.)
Quociente partidário = trunca ( votos válidos no partido /quociente eleitoral )

Ver os conceitos aqui.


Isso não expressa a quantidade de votos individuais necessária porque pressupõe que não haja dispersão da quantidade de votos em cada candidato. Só que não só há a dispersão citada, com há muita!

Vou dar um exemplo, sem sobras de quociente partidário para não complicar demais:

Vamos supor que existam 100 votos válidos, 50 candidatos, 10 vagas e 4 partidos A, B, C, D que obtiveram 40, 30, 20 e 10 votos válidos respectivamente.

O quociente eleitoral, nesse caso, é 100/10 = 10 votos.

O quociente partidário de A,B,C,D será exatamente de 4, 3, 2 e 1 deputados respectivamente.

Se 10 candidatos concentrassem todos os votos, aí cada um teria que ter 10 votos para se eleger, totalizando os 100 votos e aí seria eleitos candidatos apenas pelos votos do quociente eleitoral.

Só que isso não acontece. A votação, na prática, é extremamente dispersa e no final são mesmo eleitos os deputados mais votados, com poucas exceções.

Suponha uma distribuição de votos assim:

Cand 1: Part B: 13 votos
Cand 2: Part A: 11 votos
Cand 3: Part A: 8 votos
Cand 4: Part C: 8 votos
Cand 5: Part D: 8 votos
Cand 6: Part B: 7 votos
Cand 7: Part A: 7 votos
Cand 8: Part A: 7 votos
Cand 9: Part C: 6 votos
Cand 10: Part C: 3 votos
Cand 11: Part B: 2 votos
Cand 12: Part A: 2 votos
Cand 13: Part A: 1 voto
Cand 14: Part A: 1 voto
Cand 15: Part A: 1 voto
Cand 16: Part A: 1 voto
Cand 17: Part A: 1 voto
Cand 18: Part B: 1 voto
Cand 19: Part B: 1 voto
Cand 20: Part B: 1 voto
Cand 21: Part B: 1 voto
Cand 22: Part B: 1 voto
Cand 23: Part B: 1 voto
Cand 24: Part B: 1 voto
Cand 25: Part B: 1 voto
Cand 26: Part C: 1 voto
Cand 27: Part C: 1 voto
Cand 28: Part C: 1 voto
Cand 29: Part D: 1 voto
Cand 30: Part D: 1 voto

O resto dos 20 candidatos não teve nenhum voto válido, dentro de nossa suposição.

Eleitos pelo Sistema Atual
Partido A: 2,3,7,8
Partido B: 1,6,11
Partido C: 4,9
Partido D: 5

Eleitos pelo "Distritão" (os mais votados)
Partido A: 2,3,7,8
Partido B: 1,6
Partido C: 4,9,10
Partido D: 5

Nesse caso, A adoção do "distritão" só trocaria o 11 do partido B, que teve 2 votos, pelo 10 do partido C, que teve 3 votos. Ou seja, os votos da legenda puxariam o 11 no lugar do 10.

Em resumo:

Há 2 eleitos por votos próprios, em conformidade com o que El Pais afirma: 1 e 2.

No entanto, a verdade é que 9 dos 10 seriam eleitos por mérito próprio e não 2.

Não estou falando aqui dos suplentes de senadores. Isso é outra questão. 


 

A ilusão de se mudar o Brasil através do voto infelizmente é tênue.

A esmagadora maioria da população brasileira não tem formação e/ou preparo suficiente para discernir maçãs podres na cesta de maçãs (a maioria delas, por sinal).

Vota-se em um candidato como se fosse uma marca de sabão em pó, onde o Marketing fala mais alto que qualquer outro valor. Desse modo, o que conta mesmo é o dinheiro que cada um tem para fazer sua campanha e não a qualidade do candidato.

Onde entra o  dinheiro, entra também os interesses dos seus financiadores, quer sejam oficiais ou via caixa 2.  Como as doações de pessoa jurídica estão proibidas, as doações de pessoas físicas são tradicionalmente baixas e o fundo eleitoral é insuficiente,  as próximas eleições serão comandadas  basicamente pelo caixa 2.

Desse modo, a influência direta do nosso nicho no resultado de uma eleição é baixo. Só resta tentar influenciar, de algum modo, essa massa de eleitores, que não tem e nem terão tão cedo consciência do seu papel.




O sistema distrital puro tem o mérito de aproximar muito o eleitor do candidato e baratear extremamente o custo da eleição em relação às eleições proporcionais, sistema adotado hoje.  Mesmo com a desvantagem de regionalizar os debates durante a eleição, no final a responsabilidade do deputado federal termina se impondo sobre questiúnculas locais, como se verifica em países que adotaram esse sistema, como Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e França.



A charge, maravilhosa por sinal, é de Glauco, aquele cartunista assassinado. Mais charges dele aqui.

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